Sonegação fiscal e a lavagem de dinheiro

Necessária a existência de ações, que demonstrem a intenção do agente em dissimular ou ocultar a origem do valor

 Em novembro de 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF) proferiu decisão emblemática, na qual pacificou a possibilidade de criminalizar o não recolhimento intencional de ICMS cobrado de consumidor, conduta conhecida como apropriação indébita tributária.

 
A decisão deu novos contornos à política criminal no âmbito dos delitos tributários, que exigia até então, para sua ocorrência, a existência de fraudes específicas, como a inserção de dados falsos ou omissão ao Fisco de operações tributáveis. Entendia-se que deixar de recolher tributo devido, por si só, caracterizava atividade ilícita apenas sob o ponto de vista tributário.
 
A discussão que se pretende chamar a atenção envolve a lavagem de dinheiro nos crimes de sonegação fiscal, controvérsia ainda não definida nos tribunais brasileiros.
 
Um dos pontos centrais da questão é se o valor sonegado ao Fisco pode ou não ser considerado “produto de crime” para fins de enquadramento da lavagem de dinheiro.
 
Em 2012, houve mudança na Lei de Lavagem de Dinheiro, de modo que se passou a aceitar qualquer atividade delituosa como crime antecedente da lavagem de dinheiro. Antes da modificação legislativa, o rol de delitos precedentes era restrito, sendo limitado àqueles considerados de maior gravidade, dentre os quais não se inseria o de sonegação fiscal.
 
Na época, o legislador justificou a não inclusão desse crime porque não representava agregação ao patrimônio do agente, visto que o valor sonegado apenas permaneceria no caixa da empresa, não havendo diferença entre a quantia sonegada e o restante do patrimônio.
 
Apesar de ser esse o posicionamento defendido por grande parcela de juristas, os órgãos de persecução penal têm entendido que a sonegação fiscal constitui, efetivamente, em um acréscimo ao patrimônio do agente. Defende-se que, ainda que não represente um aumento imediato, caso houvesse o repasse ao Fisco, provocaria diminuição do capital, ou tornaria a atividade menos lucrativa.
 
A sonegação fiscal, então, ocorre justamente para que não haja a incidência/pagamento de tributos sobre determinadas transações, o que provoca maior lucratividade e renda ao agente que a praticou. Seriam os denominados “gastos economizados”, que correspondem à quantia de fato sonegada, nunca à totalidade do valor, o que permitiria, num primeiro momento, a caracterização da lavagem de dinheiro.
 
Em um segundo momento, o crime de lavagem de dinheiro, para que seja caracterizado, exige o exaurimento da via fiscal administrativa, isto é, que o débito tributário tenha sido definitivamente constituído. Trata-se de entendimento consolidado no STF pela Súmula Vinculante nº 24.
 
Caso ainda esteja em discussão, não haveria que se falar em sonegação fiscal e, logo, em lavagem de dinheiro, que exige o cometimento de um crime anterior.
 
Por fim, ainda há uma terceira polêmica envolvida, porque a lavagem de dinheiro pressupõe a existência de atos que mascarem, dissimulem ou ocultem o valor produto do crime, que seria o valor proveniente da sonegação fiscal.
 
Nesse ponto, importante esclarecer que o Direito não pune a simples utilização do produto de infração penal, porque isto é apenas o exaurimento do crime. Assim, a mera ocultação não gera responsabilização criminal, pois é necessário um processo, um esquema de lavagem.
 
O próprio STF já definiu que a lavagem pressupõe atos de ocultação autônomos do crime anteriormente praticado. Caso assim não fosse, seria, por exemplo, crime de lavagem esconder o dinheiro embaixo da cama, após um roubo.
 
Assim, é imprescindível atos concretos que evidenciem se tratarem de condutas autônomas e distintas.
 
A título de exemplo, a simples utilização direta do valor proveniente do crime fiscal na própria atividade empresarial não caracterizaria o branqueamento de capitais. Ninguém “sonega” para ficar com o dinheiro parado, sem utilizá-lo para qualquer finalidade.
 
Houve caso recente veiculado na mídia, em que, como foi constatado crescimento do patrimônio pessoal do fundador da empresa no período coincidente da apropriação indébita tributária, entendeu-se que restou caracterizada a lavagem de dinheiro, porque houve a ocultação e dissimulação dos valores provenientes da sonegação com transferência para seu patrimonio pessoal.
 
É, portanto, necessária a existência de ações, dentro de um processo, que demonstrem a intenção do agente em dissimular ou ocultar a origem espúria do valor, como a simulação de transações e de operações. Também a constituição de empresas “de fachada” para movimentar e dar aparência lícita aos valores. Não necessariamente operações complexas, mas q
 
Não é demais ressaltar que o crime de lavagem de dinheiro exige a presença do dolo, de modo que não é admitida a modalidade culposa.
 
No geral, a questão é polêmica e complexa. Mas certo que a tendência, nos próximos anos, é que o desencadeamento de operações para apurar esse tipo de crime associado ao de lavagem de dinheiro, se torne cada vez mais frequente, o que demonstra a necessidade de fomentar e aperfeiçoar o debate.
 
Gabriela Cristina Silveira é advogada na área de Direito Penal Econômico, especialista em Direito Penal e Processual Penal (ABDConst) e mestranda em Direito, Justiça e Desenvolvimento (IDP).
 
Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações
 
 
 

Fonte: Valor.globo.com

27/07/2020

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